domingo, outubro 24, 2010

tomé em tempos de crise (1)

Foi no quarto lance de escadas que Tomé deu o primeiro suspiro de cansaço. No último degrau, bem soube, pôde descansar as calosidades em erupção e sentir o vento de raspão nos pêlos ralos do pescoço. À sua volta, tudo era cinzento, como uma multidão desinteressante. Há mesmo uma multidão desinteressante que surge, encabeçada pela figura de um careca, recortado sob a ombreira duma porta agora nítida, que lhe diz
olá
venha cá
ao que veio
diga lá
ao que respondeu Tomé, com o discurso prudente, ligeiramente ensaiado, não era hábito seu fazer parte destes ajuntamentos, mas esse seu emergente desejo permitia às palavras sair, e elas saíram tipo
fui enviado
sou eu
escolheram-me
não quero
fui obrigado
o que é que tenho que fazer?
Aí o careca recuou e perdeu-se na multidão que estava atrás dos seus ombros. Outro avançou, este com cabelo e barba, tudo a que tem direito, inclusive um olho negro, este levara porrada, se levara também dera, se dera podia dar-lhe porrada a ele também, Tomé, coitado, que medo que ele tem. Diz-lhe o cabeludo que
é assim
é um gajo
para morrer
para matares
é o druida
conheces
vês como conheces
Tomé afastou-se, em arrecuas semelhantes às do careca, mas acenou como quem aquiesce, como quem diz que sim mesmo que queira dizer que não, como quem não é assassino mas decide brincar aos assassinos por uns trocos, porque não há, porque é assim, porque Deus não existe, então o Inferno também não.

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