quarta-feira, agosto 18, 2010

vim fazer a cobrança

Foi notícia e imagem de muita televisão que se fez, foi conversa entre amigos e vizinhos, foi zumbido, foi boato, foi vento, e, para desgraça de todos, foi. Porque aconteceu, e soube-se em jeito de enunciado teórico que o ter sido anunciado e o ter sido discutido não impedia em nada que o ter sido, sentido, acontecido, fosse. Localizo a acção um minuto antes do fim do mundo. Falo do fim das coisas como são e como as querem, da natureza, do que já lhe foi arrancado, e de tudo o que ela arrasta consigo, que são os homens, as artes e as ideias. Acabou. Ao longo desse minuto, que foi o último contado, porque o fim do mundo é o fim do tempo e dos ponteiros, muito sucedeu, digno deste registo.
Primeiro despediram-se os peixes, uns dos outros, e depois do mar, porque por terem visto o início do mundo e a origem da vida, não queriam assistir ao seu fim, e deu-se épico suicídio em massa, peixes fora de água, morte por asfixia, tantos que eram, os primeiros a partir. As aves quiseram abraçar-se e esqueceram os eventuais conflitos, fecharam-se em círculo, asa sobre asa, pois conheciam este mundo mais do que todo e qualquer, e exigiram de si mesmas um final fechado e escuro. Os outros animais, sem contar com os homens, de que falarei adiante, gritaram, gritaram porque a única coisa que o fim lhes dava era medo, e foi um grito bonito, quase capaz de vencer o medo por que se gritava, e concentrados que estavam em gritar, deram por si esquecidos de que o fim ali estava e quando ele os eliminou, foi como uma respiração, e não como um grito abafado. As plantas foram as únicas que não se fizeram ouvir, porque os peixes agitaram a água quando dela saltaram e das aves se ouviu o roçar das asas duma com as asas doutra e dos outros animais que não peixes nem aves se ouviu gritar. As plantas quedaram-se dignas e o manto verde por elas estendido ganhou outras cores e outra graça, mas foi tudo muito discreto, como não querendo chamar a atenção do fado para si, mas marcando uma posição de cor e força.
Os homens, por sua vez, foram condenados a morrer um por um: de cada vez que um caía, outro estava de pé a vê-lo morrer. Entre uma morte e outra, cabia à cabeça humana reflectir. E o último homem a morrer reflectiu sozinho e sozinho morreu, pois não havia ninguém para o ver morrer. Um minuto não é conta suficiente para cada um morrer por si, em seu tempo, e permitir-se ainda uns instantes de reflexão, por isso não percebo como morreram os homens desta maneira, mas nesta circunstância é certo que o medo e a consciência em peso fizessem o tempo passar mais devagar. Quando o mundo acabou, ficou a ausência de mundo, e nesse espaço vazio uma memória de coisa nenhuma, e o berlinde que tinha sido era agora uma bolha, tão frágil que rebentou, e foi assim, sem mais tirar nem menos pôr.

1 comentário:

  1. "porque o fim do mundo é o fim do tempo e dos ponteiros" - fodass e é mesmo. escreve e continua a escrever meu caro

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