Foi notícia e imagem de muita televisão que se fez, foi conversa entre amigos e vizinhos, foi zumbido, foi boato, foi vento, e, para desgraça de todos, foi. Porque aconteceu, e soube-se em jeito de enunciado teórico que o ter sido anunciado e o ter sido discutido não impedia em nada que o ter sido, sentido, acontecido, fosse. Localizo a acção um minuto antes do fim do mundo. Falo do fim das coisas como são e como as querem, da natureza, do que já lhe foi arrancado, e de tudo o que ela arrasta consigo, que são os homens, as artes e as ideias. Acabou. Ao longo desse minuto, que foi o último contado, porque o fim do mundo é o fim do tempo e dos ponteiros, muito sucedeu, digno deste registo.
Primeiro despediram-se os peixes, uns dos outros, e depois do mar, porque por terem visto o início do mundo e a origem da vida, não queriam assistir ao seu fim, e deu-se épico suicídio em massa, peixes fora de água, morte por asfixia, tantos que eram, os primeiros a partir. As aves quiseram abraçar-se e esqueceram os eventuais conflitos, fecharam-se em círculo, asa sobre asa, pois conheciam este mundo mais do que todo e qualquer, e exigiram de si mesmas um final fechado e escuro. Os outros animais, sem contar com os homens, de que falarei adiante, gritaram, gritaram porque a única coisa que o fim lhes dava era medo, e foi um grito bonito, quase capaz de vencer o medo por que se gritava, e concentrados que estavam em gritar, deram por si esquecidos de que o fim ali estava e quando ele os eliminou, foi como uma respiração, e não como um grito abafado. As plantas foram as únicas que não se fizeram ouvir, porque os peixes agitaram a água quando dela saltaram e das aves se ouviu o roçar das asas duma com as asas doutra e dos outros animais que não peixes nem aves se ouviu gritar. As plantas quedaram-se dignas e o manto verde por elas estendido ganhou outras cores e outra graça, mas foi tudo muito discreto, como não querendo chamar a atenção do fado para si, mas marcando uma posição de cor e força.
Os homens, por sua vez, foram condenados a morrer um por um: de cada vez que um caía, outro estava de pé a vê-lo morrer. Entre uma morte e outra, cabia à cabeça humana reflectir. E o último homem a morrer reflectiu sozinho e sozinho morreu, pois não havia ninguém para o ver morrer. Um minuto não é conta suficiente para cada um morrer por si, em seu tempo, e permitir-se ainda uns instantes de reflexão, por isso não percebo como morreram os homens desta maneira, mas nesta circunstância é certo que o medo e a consciência em peso fizessem o tempo passar mais devagar. Quando o mundo acabou, ficou a ausência de mundo, e nesse espaço vazio uma memória de coisa nenhuma, e o berlinde que tinha sido era agora uma bolha, tão frágil que rebentou, e foi assim, sem mais tirar nem menos pôr.
colecção das coisas que retiras; colecção das coisas que era melhor não; dedicado a raul águas mil, apesar das mentiras
quarta-feira, agosto 18, 2010
quinta-feira, agosto 12, 2010
coisas que
Ele há a menina de cabelo verde e mãos partidas, localizada em cubo de gelo, com seu gato, com seu problema de ouvidos, ele há a princesa com asas a quem olhos disseram que eva era ave ao contrário como roma é amor, ele há a rapariga mais bonita do mundo, mais convencida do mundo, mas então desdentada, zarolha e desmamada, tem dado nisto: estórias de encantar que. Pronto.
Digo eu, não sei, porque mesmo sabendo,as palavras têm pouca força.
Não é o Vaz que o faz.
Digo eu, não sei, porque mesmo sabendo,as palavras têm pouca força.
Não é o Vaz que o faz.
quarta-feira, agosto 11, 2010
alfredo, o coveiro [parte três de três]
Coveiro e velha entendidos estavam, frente a campa de homem desconhecido, oferecendo ao pobre uma visão do inferno, oferecendo à árvore calor humano em investidas brutas, oferecendo a si mesmos a carne um do outro, sabia mal, mas e então os meninos de África.
Alfredo experimentou pela primeira vez o toque de carne viva, e desertaram da sua memória as recordações obscuras de passageiros que ele fodera, e que por tesão mantida de uma vida para outra, o haviam fodido a ele, coveiro, carrasco, vítima.
A velha, podre e maculada, olhou para ele nos olhos pequeninos. E olhos de coveiro, habituados em ver morte e não vida, responderam-lhe. Por mais estragada que estivesse, estranhou ele alguma coisa, e foi-lhe dito por alguém, que era ele próprio, pois quem sozinho está acaba por se fazer companhia, que era imperioso apagar aquele resto de vida, e temos ali uma cova com duas carcaças, a velha que se chamava Antónia e seu marido Heitor, mais conhecido por Pitosga.
A semente sobre o corpo de Gustavo secara, o coveiro correu a cobri-lo de terra, e foi como que uma despedida.
Alfredo experimentou pela primeira vez o toque de carne viva, e desertaram da sua memória as recordações obscuras de passageiros que ele fodera, e que por tesão mantida de uma vida para outra, o haviam fodido a ele, coveiro, carrasco, vítima.
A velha, podre e maculada, olhou para ele nos olhos pequeninos. E olhos de coveiro, habituados em ver morte e não vida, responderam-lhe. Por mais estragada que estivesse, estranhou ele alguma coisa, e foi-lhe dito por alguém, que era ele próprio, pois quem sozinho está acaba por se fazer companhia, que era imperioso apagar aquele resto de vida, e temos ali uma cova com duas carcaças, a velha que se chamava Antónia e seu marido Heitor, mais conhecido por Pitosga.
A semente sobre o corpo de Gustavo secara, o coveiro correu a cobri-lo de terra, e foi como que uma despedida.
ficção
E lembrei-me de algumas coisas que queria apagar
Não querendo, ao mesmo tempo
Voltando ao assunto encerrado
Encerrado que foi por volta dos três anos
Quero descobrir o sistema
Os cordelinhos
Porque o facto parece vidro e as coisas parecem
Brinquedos meus
Nos quais não toco
Porque quero esquecer
Que a História me é líquida
E o espaço tão vasto
E a arte coisa mentirosa -
Que não acredito
Que os vejo como produto
Que ouso
Que invento e que se inventa em si mesmo
Que penso -
Penso nisto como mais uma prenda merdosa
Que fui capaz de me dar.
Raul
Não querendo, ao mesmo tempo
Voltando ao assunto encerrado
Encerrado que foi por volta dos três anos
Quero descobrir o sistema
Os cordelinhos
Porque o facto parece vidro e as coisas parecem
Brinquedos meus
Nos quais não toco
Porque quero esquecer
Que a História me é líquida
E o espaço tão vasto
E a arte coisa mentirosa -
Que não acredito
Que os vejo como produto
Que ouso
Que invento e que se inventa em si mesmo
Que penso -
Penso nisto como mais uma prenda merdosa
Que fui capaz de me dar.
Raul
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