quarta-feira, maio 26, 2010

quando o dinheiro falta

Com desenho elaborado, Gustavo rabiscou o seu nome no fundo da folha, onde para o efeito figurava um xis, e entregou-a à Paula, que se mais simpática fosse teria tornado a sua vida nos céus mais fácil, se é que vida lhe posso chamar.
Esperou dias para que lhe enviasse o seu cartão, que lhe permitia aceder, entre outros, à sua conta no paraíso, e aos descontos na cultura, válidos apenas no primeiro ano, ao fim do qual teria que passar a pagar uma anualidade. A falta de comprovativo de nibe não permitiu que lhe pagassem o subsídio de óbito e o recurso à segurança social não lhe foi diferido por apresentar tão bom aspecto e cuidado.
O dinheiro é o que move rodas e pernas e sinos e assim andam para a frente as vidas e, está claro, as mortes, só o sabe quem lá está, e aqui vejo uma boa razão para quem respira não deixar heranças valorosas aos seus entes queridos, cedo se aperceberão de que os títulos e as notas têm uso cá em cima. Ora, dinheiro Gustavo não tinha.
E sem dinheiro para meias, para contraceptivos e para bilhetes disto e daquilo, as três coisas essenciais na vida de um homem, e na morte, por acréscimo, sucumbiu aos meios de sobrevivência mundana, calou a dignidade e começou a trabalhar.
Quem pegasse num exemplar do diário das nuvens veria nos classificados um anúncio que respeitava a restrição dos cento e sessenta caracteres e explicava tim tim por tim tim as condições do serviço, que cá em cima não é crime algum.
O primeiro cliente surgiu, com lata, no bairro de lata, divino que seja.
Fazes tudo o que dizia no anúncio?
Nem metade, mas preciso do dinheiro.
Mas isto é assim?
É.
Olha, não acho justo. Tens sorte que o meu trabalho é acabar com a injustiça.
Mas não cometi crime nenhum.
Cometeste cometeste.
Cometi?
Cometeste. Mentiste. Mentiste no anúncio.
Levas-me preso?
Pelo contrário. Liberdade é o que lá não falta.
E Gustavo desceu degrau a degrau, elevadores são grande investimento para anjo desertado, e no balcão do átrio, lá muito em baixo, pediu um mapa das instalações, no menos três era a ala do alterne, inferno que é inferno tem uma.

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