quinta-feira, dezembro 29, 2011

o aquário (excerto)

Luz. Há um aquário grande. CALIPSO brinca com a mão na água dos peixes.
Y: Estás a perceber?
CALIPSO: Oh, sim, estou. Tira a mão de dentro do aquário. Que tal a guerra? Essa guerra. Correu bem? Ganharam?
Y: Estou vivo.
CALIPSO: Ainda bem. Vieste morrer aqui?
Y: Vim morrer aqui.
CALIPSO: Vou trazer-te um café.
CALIPSO vai até à mesa do encenador e traz de lá um café, que este lhe entrega. Antes de o dar a Y, arranca-lhe um beijo curto.
Y: Não quero beijar-te mais vez nenhuma. A guerra correu bem. Matei vinte e nove pessoas, só uma é que era mulher. Matei vinte e oito homens, estás a perceber? Senti-me bem a matá-los, senti arrepios no início. Sabes, senti uma parte luminosa a evacuar-me e pouco depois disso esse espaço já estava preenchido. Depois senti-me bem. A minha cabeça estava vazia, a minha cabeça, sabes? Matei pelo menos vinte homens de cabeça vazia. Os outros arrepiaram-me. Mas depois foi tão bom. O café está uma merda.
CALIPSO: E agora?
Y: O quê?
CALIPSO: Tens pessoas aqui que querem morrer. Desejas matar alguma delas?
Os outros agitam-se e fazem sons.
Y: Sim. Mas não vou matar mais ninguém. Isso e beijar-te. Beijar-te nunca mais te beijo. Matar também não mato. Já não sou um soldado. Não voltes a meter ali a mão, ouviste?
CALIPSO: Está bem. Tens razão, não devo.

acção interna

Ela convida-o para entrar na sua casa e a casa afigura-se-lhe desde o início como uma casa de pecado.
A par da atmosfera quente e quieta do espaço proposto para aquele encontro, a rapariga ganha aos seus olhos a textura e o contorno duma mulher, que se expõe em calor e em romantismo, quando diz das festas e dos trajes sumptuosos, dos acontecimentos originais e das aventuras do espírito.
Há um excesso muito perturbador na forma como ela própria se descreve. Mas a grandeza não é hipérbole, antes real.
A rapariga tem tudo e tudo alcançou já, no que toca a possibilidades de conquista, de conquista da vida. A rapariga tem tudo para ser mulher. As situações que o seu corpo desenha ou em que ele se inscreve são mais elevadas e mais interessantes em todos os domínios.
Tanto o cavalheiro que encontrou para si como a transcendência cosmopolita que ela devora mas em que não se dilui parecem aparas dum esquisso de ficção.
O mais incrível para ele foi o facto de, apesar de o sonho ser a coisa que a ilumina (a coisa que ele não tem) e a podia desacreditar (a ele também), este ser o elemento que a esclarece e em vez de a encerrar e de a esgotar a potencia, como exemplo, como projecto único, como mulher e como musa.

terça-feira, setembro 27, 2011

a gaivota

rendez-vous

A agente imobiliária era uma mulher baixa e entusiasmada. Conhecia-se mal, mas gostava do pouco que conhecia sobre si, em especial do seu trabalho, que se caracterizava completamente em desenvolver meios de aplicação dos princípios gerais da insistência.

Pierre Vert era o nome do porteiro dum prédio erguido há que tempos naquela cidade. Pierre não cedia com facilidade, não porque a isso fosse obrigado, mas porque entendia que o poder sobre as chaves, as entradas e as saídas, exigia de si tirania, e tirano, ainda que pequeno, era o que ele era.

Quando no prédio guardado por Pierre entra a agente imobiliária, é porque há uma casa que tem que ser visitada, comprada, mas para isso aberta e então temos a persistente agente a querer que Pierre abra a porta, a publique, a liberte - e Pierre fincando o seu tirano pé, não deixo coisa nenhuma.

A agente imobiliária desistiu hoje mesmo daquela casa.
Pierre Vert pousou hoje mesmo as chaves e não mais saberá delas.

A desistência é uma revelação. / Clarice Lispector

quarta-feira, agosto 10, 2011

lição de tango

1. Victor e Melissa aproximam-se, e para tal executam diagonais obscenas.
Quando se agarram, não se olham. Depois, então, sim. Os olhos dela como poços onde os dele se precipitam para de lá trazer água.
Sem descanso em Bratislava, agarram-se e soltam-se para se apropriarem um do outro outra vez. A agilidade é líquida e escorre do pescoço dela para os ombros dele.
O suor é digital.

2. Victor e Melissa conversam para chegarem a algum lado onde os corpos não chegaram. Mas o piano sobrepõe-se às palavras e são chamados de novo à pista, sem que haja tempo para dois dedos e duas pedras de gelo.

3. Victor e Melissa brilham, ela deixa cair o tronco e os cabelos para trás: ele segura-a pela cintura. Ela respira e sobe para ele, há uma pausa. E as diagonais são de novo desenhadas, porque o ritmo encontra a sua origem. Até à exaustão, os corpos se torcem e escaldam e não se ouve lamento nenhum.

Mas depois separam-se e ficam apenas os riscos dourados.
Alguém aplaude.

sexta-feira, agosto 05, 2011

não

O homem de alças caminhava pelo trilho junto ao mar.
Estava a seguir uma mosca.
Na coisa de madeira que estava encaixada perpendicularmente no trilho, o homem de óculos olhava-o, enquanto executava um cigarro: parecia fazer-lhe uma pergunta.
A mosca pousou em cima do cigarro do homem de óculos e o homem de alças seguiu-a.
Enfrentaram-se.
O homem de óculos baixou-os sobre o nariz.
O homem de alças: dás-me um cigarro?

quand je bois du vin clairé

Disse uma vez o Raul aos aldeãos da calina, aproveitando uma pausa que o vento trouxe:
- Às pessoas que por mim não detêm qualquer fascínio, as que me odeiam ou as que me não conhecem, deviam pagar um copo de vinho as pessoas que me amam fascinadamente (quer me conheçam quer não), aproveitando para sugerir com a máxima discrição que me paguem um copo a mim.
E os aldeãos abriram os barris e beberam o vinho animadamente.

arquitectura

Bem-vindos à casa que é uma metáfora do paraíso.
Não há casa como esta. Apresento-vos o porteiro, não o subestimem só por ter cara de sapo: a um sinal mínimo de indecoro da vossa parte, ficarão à porta. Entrem. Seja bem-vindos mas não se sintam desejados nem esperem que o vosso nome seja lembrado, vejam que bela pintura. É um retrato meu, que vos ficará para sempre na memória. Subamos ao quarto. Veremos o quão poderosa é a acústica destas paredes quando gemerem - a melhor coisa que podem fazer nesta casa é foder. Depois disso, saiam.
E terá sido um prazer.

pouca terra

Vais gostar mais de mim quando me olhares, do vale da tua poltrona.
Faz isso.
Não te mexes, porque podes só deixar-te estar e o comboio prossegue e a terra é pouca e tu não me olhas.
Só te interessas pela cidade.

Raul

sexta-feira, julho 29, 2011

entre e sente-se

Reuniram-se na esplanada habitual o doutor e o paciente.

O doutor lançou:
- Como é que se sentiu? Como é que se sente, agora?
- Bem: solto, amplo, moderno, secreto, sedutor, tagarela, condenado, apaixonado, excitado, loiro e bailarino.
- Estou muito contente. O meu trabalho aqui está feito. Aqui, quero dizer, consigo.
- Estou curado?

O doutor lançou:
- O senhor está apenas como disse.

sexta-feira, julho 22, 2011

waiting, de faith wilding 7/7

À espera que o meu corpo se acabe, que eu fique feia
À espera que a minha carne se desmanche
À espera que as minhas mamas murchem
À espera de visitas dos meus filhos, de cartas
À espera que os meus amigos morram
À espera que o meu marido morra
À espera...
À espera de ficar doente
À espera que as coisas melhorem
À espera que o inverno acabe
À espera que o espelho me diga que estou velha
À espera de um bom movimento intestinal
À espera que a dor desapareça
À espera que a luta acabe
À espera da libertação
À espera da manhã
À espera do fim do dia
À espera do sono
À espera...

FIM

quinta-feira, julho 21, 2011

waiting, de faith wilding 6/7

À espera que os meus filhos regressem da escola
À espera que eles cresçam, saiam de casa
À espera de ser eu mesma
À espera de entusiasmo
À espera que ele me diga alguma coisa interessante, me pergunte como me sinto
À espera que ele deixe de ser sério, me agarre a mão e me dê um beijo de bom dia
À espera de satisfação
À espera que os miúdos casem
À espera que alguma coisa aconteça
À espera...
À espera de perder peso
À espera do primeiro cabelo branco
À espera da menopausa
À espera da sabedoria
À espera...

quarta-feira, julho 20, 2011

waiting, de faith wilding 5/7

À espera que o meu bebé venha
À espera que a minha barriga inche
À espera que as minhas mamas se encham de leite
À espera de sentir o meu bebé mexer
À espera que as minhas pernas parem de inchar
À espera das primeiras contracções
À espera que as contracções acabem
À espera que a cabeça saia
À espera do primeiro grito, da placenta
À espera de segurar o meu bebé
À espera que o meu bebé beba o meu leite
À espera que o meu bebé pare de chorar
À espera que o meu bebé durma pela noite dentro
À espera que as minhas mamas sequem
À espera de recuperar a minha figura, que as marcas das costuras desapareçam
À espera de algum tempo para mim
À espera de ser linda outra vez
À espera que a minha criança vá para a escola
À espera que a vida comece outra vez
À espera...

waiting, de faith wilding 4/7

À espera do meu grande amor
À espera do homem perfeito
À espera do Sr. Certo
À espera...
À espera de me casar
À espera do meu dia de casamento
À espera da minha noite de núpcias
À espera de sexo
À espera que ele dê o primeiro passo
À espera que ele me estimule
À espera que ele me dê prazer
À espera que ele me dê um orgasmo
À espera...
À espera que ele chegue a casa, preencha o meu tempo
À espera...

terça-feira, julho 19, 2011

waiting, de faith wilding 3/7

À espera que ele repare em mim, que me chame
À espera que ele me convide para sair
À espera que ele me dê atenção
À espera que ele se apaixone por mim
À espera que ele me beije, me toque, me toque nas mamas
À espera que ele passe na minha casa
À espera que ele me diga que sou linda
À espera que ele me peça para continuar
À espera de acariciar, de curtir, à espera de ir até ao fim
À espera de fumar, de beber, de ficar fora até tarde
À espera de ser uma mulher
À espera...

waiting, de faith wilding 2/7

À espera que as minhas mamas se desenvolvam
À espera de usar soutien
À espera da menstruação
À espera de ler livros proíbidos
À espera de deixar de ser desajeitada
À espera de ter uma boa figura
À espera do meu primeiro encontro
À espera de ter um namorado
À espera de ir a uma festa, de ser convidada para dançar, de dançar perto
À espera de ser linda
À espera do segredo
À espera que a vida comece
À espera...
À espera de ser alguém
À espera de usar maquilhagem
À espera que as minhas borbulhas se vão
À espera de usar batom, de usar saltos altos e collants
À espera de me vestir bem, de depilar as pernas
À espera de ser bonita
À espera...

waiting, de faith wilding 1/7

À espera...
À espera...
À espera...
À espera que alguém entre
À espera que alguém me agarre
À espera que alguém me alimente
À espera que alguém me mude a fralda
À espera...
À espera de rabiscar, de andar, de falar
À espera de ser aconchegada
À espera de alguém que me leve lá fora
À espera de alguém que brinque comigo
À espera de alguém que me leve lá fora
À espera de alguém que leia para mim, me vista, me aperte os sapatos
À espera da Mamã para me escovar o cabelo
À espera dela para mo encaracolar
À espera de usar o meu vestido franzido
À espera de ser uma linda menina
À espera de crescer
À espera...

quarta-feira, junho 29, 2011

tanto quanto: o que foi não é nada isto

T: Continuamos esta conversa depois.
N: Começamos outra agora.
T: Vamos.
N: Não me sinto preparado.
T: Logo vi. Quanto tempo?
N: Não é uma questão de tempo.
T: É sim, está na cara que é.
N: Quem vê caras não vê corações.
T: Não. Quanto tempo?
N: Todo.
T: Chega?
N: Vamos ver...
T: Gostaste?
N: Sim.
T: Fala-me das tuas outras relações.
N: "É uma longa história, doutor."
T: Estás a citar.
N: Mais tempo, então.
T: Nunca falámos sobre isto.
N: Isto o quê?
T: Isto, o que se passa.
N: Gostas de mim?
T: Estás a citar.
N: Já não. Gostas de mim?
T: Tanto.
N: Tanto tempo.
T: Ou tão pouco.
N: É tudo uma questão de ritmo.
T: Velocidade!
N: Não.
T: Sabes-me bem.
N: A quê?
T: A comida indiana.
N: É bom saber.
T: Só te digo coisas bonitas, eu.
Ñ: Foram impulsos.
T: O quê?
N: As outras relações. Foram impulsos.
T: É assim.
N: Esta não.
T: Pois. O tempo transforma o impulso numa sensação.
N: Mais tempo, então.
T: É uma tortura.
N: Estás a citar.

cadernos de konstantin gavrílich V

Asas brancas que
Batem com gosto,
Colhido das ervas e do lago,
Chamam-te da casa grande
Erguida para te assombrar!
É o diabo, abertos os seus olhos
Escarlate
Que te quer em decadência, em
Voo, em animalidade,
Destruir o mundo e as gentes que em
Ti habitam,
À gaivota não.

K.G. Tréplev

segunda-feira, maio 23, 2011

cadernos de konstantin gavrílich IV

Lago que adormece o Diabo.
O Diabo és tu, Nina, não és?
Porque não olhas para mim, já não.
Esses olhinhos inchados de chorar, ó Diabo.
Um Diabo que chora, que é uma gaivota.
E este lago que o atrai, que o adormece, que te.
Não há ninguém, é só um ulmeiro que a noite faz escuro.
No escuro, só o brilho dos teus olhos, vermelhos, e o cheiro do enxofre.

K.G. Tréplev

domingo, maio 15, 2011

morrer como um homem

Quando o cabelo cresceu o suficiente para que o fizesse, Quim deu com ele um nó em volta da pila e apertou, apertou muito.
Decidiu que aquele contacto era para manter, então formalizou-o: uma rasta, a pila envolvida por uma rasta, como que peluda.
Durante os primeiros tempos a rasta obrigava Quim a curvar-se, mas entretanto o cabelo cresceu, enfraqueceu e ele pôde respirar de alívio.
Passado certo tempo, fez uma trança, que funcionava como alavanca para o orgasmo, que difícil era limpar uma pila cabeluda.
As coisas já se confundiam.

Está na hora de o Sr. Quim cortar o cabelo! - insistiu alguém.

Quim acedeu e de ora em diante é um homem sem pila.
Se é que se pode chamar a isso um homem.

sexta-feira, maio 13, 2011

cadernos de konstantin gravrílich III

Fodei-vos bem que eu
Olho-vos e fricciono
Rente ao nervo a
Máquina de
Amar e fazer filhos!

K. G. Tréplev

cadernos de konstantin gravrílich II

Galgo os trilhos da poeira em que os pardais se sacodem,
Assim o gesto de matar uma gaivota é
Isso apenas, o de quem mata uma gaivota e não a
Viperina moça que corre, vestida de branco, banhada em
Óleo que escorre e não se agarra à pele, que
Tropeça como eu nas pedras imóveis,
Antigas.

K. G. Tréplev

quinta-feira, abril 28, 2011

cadernos de konstantin gravrílich I

O homem estava entregue à solidão e à vertigem. Só havio riacho, não havia lago. Não havia família nem visitas, só havia propriedade. Não havia um estrado nem uma actriz, mas havia um mundo. Não havia rapé, bebeu apenas vinho.
Então o homem sentou-se a escrever e não saltou, morreu doutra maneira.
Onde é que posso encontrar o Diabo?

K. G. Tréplev

terça-feira, abril 05, 2011

três mãos de bronze

O louco senta-se e bebe, mas é como sempre bebesse, pois não diz coisa com coisa.
O louco conta histórias, mas mais valia não fazer nem dizer nada, porque aquelas são invenção e o louco é uma fraude. Se é uma fraude, não é louco nenhum. Ainda assim, é loucura a busca que faz pelo conhecimento de si mesmo.
O louco não sabe o que anda aqui a fazer, e não merece que ninguém morra por ele, como a arte.

os que caminham para a estática

Os visados deslocam-se em frente, apesar dos pesos que transportam e do próprio desequilíbro das massas corporais, é uma instabilidade que só ameaça e não chega a causar estragos. Os pesos que transportam são necessários ou prescindíveis, úteis ou decorativos e são todos pilares de uma causa que é uma casa, que é uma tentativa apenas.
Andam em frente, atravessando corredores altos, expositivos e impositivos, onde empilhados estão os produtos, que vão entupir o vazio daquelas alminhas.
Eles caminham para uma casa cheia, se não entulhada, caminham sob a alçada de créditos e de favores, seduzidos pela frieza olímpica, nórdica, gostosa, porque de bom gosto, mas não estão satisfeitos.
Depois disso tudo, queres o quê.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

bom censo ou mija-me em cima

Judas era um homem calvo a precisar de dinheiro. Para ganhá-lo, fazia combinados de empregos diferentes e tentava conhecer muitas pessoas, por achar que ritmo e contacto o fariam enriquecer. Judas tinha muita razão nisto, mas era um ingénuo e um incompetente. Tinha os dois oponentes da mão direita muito desenvolvidos por se masturbar tantas vezes. É esse o motivo de lhe terem crescido pêlos nas mãos e caído os pêlos da cabeça.
Na cidade estavam a angariar pessoas para fazerem inquéritos a outras pessoas e, para isso, os homens poderosos da cidade avaliavam os interesses, preenchiam papéis, propunham o preenchimento de papéis e organizavam as pessoas em filas.
Numa dessas filas estava Judas, que já tinha preenchido os seus papéis e aguardava a entrevista, os inquéritos e o consequente dinheiro. Passou tanto tempo esperando e olhando para o vazio que o vazio deixou de o ser, e Judas deu por si a olhar para o peito farto de uma mulher, que começou por se sentir ofendida com o tratamento libidinoso do careca, mas que depois se apaixonou.
Quando conversaram, o gelo sendo quebrado pela mulher, Judas teve uma erecção muito notória. Nisto reparando, a mulher fez-se seguir por ele até ao quarto-de-banho. Abandonaram os dois a bicha e foram foder. Afincadamente se lamberam e roçaram. Judas quis aproveitar que estava na casa de banho para mijar, mas a mulher implorou-lhe que mijasse para a boca dela. Apesar de muito estranho ser para ele, Judas mostrou disponibilidade. Ninguém entrou no quarto-de-banho porque não havia vontade de mijar nem interesse nos gemidos que se ouviam, o interesse era todo para os inquéritos, o dinheiro e as possibilidades.
Quando os dois voltaram para a fila, para o final da fila, estavam encharcados em suor, a mulher encharcada em mijo, no entanto, cheirando bem. Mesmo assim, Judas pediu desculpa por ter tão fraca pontaria. Respirou com som e alívio quando ela o desculpou. Sabia que ia conseguir aquele emprego. Nunca se sentira tão realizado.
Enquanto esperavam, a mulher deu-lhe os seus dados e procurou um sítio para esperar sentada, onde acabou por adormecer.
Judas subiu para a entrevista ao grito do seu nome e a primeira coisa que fez foi mijar para a boca do homem de fato, que afinal não era nada simpático.

sexta-feira, fevereiro 11, 2011

3. jogar a ti

Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais do que eu. Contas-me que és alguém, diferente do que sou e menos interessante, mas és, apesar de tudo. Não estás aqui para falar de ti, percebo que és uma actriz, é a minha hora. Um pano que se abre para ti, Maria, que falas comigo através de um espelho que não há e depois me mostras a Luísa, a triste Luísa, que vive com a gata, a jornalista gorda, estamos a tratá-la muito mal, mas a tratá-la, apesar de tudo. Sigo um corredor escuro até um telefone que toca. Estou, Luísa? Não quero estar contigo, sê infeliz. E agora mostras-me imagens. Vejo os outros que conheço a seguir-me os passos e oiço-me falar com a Maria sobre a gata da Luíza. About you. E é noutro sítio que me dás auscultadores para ouvir a Maria fazer-se passar por mim para o outro. O outro conhece-me, mas não sabe quem sou. Tenho que cortar o cabelo.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

2. arrancar-te o sorriso

Estás confortável? Estou. É bom quando nos emocionamos. Deitam-te numa cama, atiram contigo para cima duma. Estás confortável? É a menina que da outra vez me encostou à parede, estou deitado no peito dela. Antes da menina, o homem do cabelo e da barba, que me beijou, depois da menina, como eu gosto de doces, Maria! Menos do que da outra vez, mas então ela reconheceu-me, que bom que é, rio muito. Poderá o amor ser outra coisa? Cheese: fotografam-te. Vê-te, ali sozinho entre os pretendentes. Ele quer arrancar-me um esboço, porque lhe dá tesão. É bom quando nos emocionamos, I'm smiling. Agora puxam-me para trás e não consigo fazer nada, ou não quero, quero deixar as coisas como elas estão, como elas fossem, sejam, um sonho.

1. interno

O pano sobe. Escolhe-me para que te siga e contiga beba esta vodca e te conte coisas de dentro, para que depois tenhamos aquela cumplicidade, até que eu dê parte fraca e me abandones. Estou para aqui a vê-los dançar. O pano desce.

terça-feira, janeiro 11, 2011

o jogador

Dêem-lhe tempo para se recompôr. E se tempo é dinheiro, que seja dinheiro o que lhe dêem, que ele o use, o gaste e que, depois disso, possa escutar. Oh, paguem-lhe para ele vos ouvir. Os vectores da atenção estão a confundi-lo, e é este o caso que dinheiro e tempo salvarão, se em justa medida. Sejam-lhe gratos e adquiram um letreiro orgulhoso que possam exibir, um letreiro que vos chame remetentes fiáveis. Tudo o que ele quer é uma roleta onde os desperdice.