segunda-feira, julho 19, 2010

alfredo, o coveiro [parte dois de três]

Gostava de poder dizer que tinha sido por raiva, mas não podia, um, por não ter sido, dois, por Alfredo ser incapaz de falar, tímido era desde que se conhecera, e por relação lógica se entende que a amizade com os defuntos era coisa espiritual, espirituosa se acompanhada por copo, garrafa ou cantil.
Limpou-se à vista de uma senhora que vigiava as flores de seu marido adormecido, essa senhora chocou-se e correu a esconder-se atrás de um cipreste, era velha velha velha.
Alfredo correu desfraldado até ela não tenha medo minha senhora se soubesse o que tenho lá em casa aí sim o que tem lá em casa uma tarântula que horror, fez-se amizade.

alfredo, o coveiro [parte um de três]

Contra o vento polémico, o coveiro, de seu nome Alfredo, punha um pé à frente do outro, outro à frente de um, avançando. Avançava para novo buraco cavado, nova amizade em seu leque renovável de amizades. Avançava a pé, a lambreta ficara estacionada à porta do cemitério. Este corpo, trazido em ombros seus, braços pendendo, foi por Alfredo depositado, não delicadamente, atirado. Com a pá foi-lhe dado um jeitinho e à volta de Alfredo começava o tributo, tão querido era o corpo, tão íntimo, tão belo, tão generoso, ainda que mais não fosse que branca carcaça bafienta, fruta roída, isco de corvo. Mais do que isto tudo, era pai, filho, irmão de alguns, cantou-se, e sobretudo, houve flores e lágrimas e foi tão bonita a despedida.
Quando ficou sozinho com o corpo, aquele coberto de terra e pedra e flores e lágrimas, cuspiu-lhe Alfredo em cima e disse-lhe vi logo que não eras muito dado não colaboraste fizeste de ti peso morto que difícil foi transportar-te e atirar-te para o buraco onde vais passar o resto da tua, o corpo não cedeu, não se remoeu em resposta por dentro do plástico preto, aqui não há caixão.
Alfredo descontente coçou sua careca e seu sovaco e seu tomate direito, e por isto lhe foi imposta reacção fálica, que o coveiro estimulou, que se veio no cadáver, ninguém viu.