sábado, novembro 06, 2010

cruzar referências

O homem olhou para baixo e procurou o seu pé. Estava assente sobre o chão, estava calçado e estava tenso por sentir o peso do olhar do homem de que era pertença inata; o outro pé também estava bem.
O problema estava em cada uma das mãos, que naquele homem havia duas. As mãos puxavam o homem até coisas que ele não queria alcançar. O homem começou por tentar controlar as mãos, autónomas e indelicadas, mas depois deixou que elas o guiassem. E as mãos levaram-no às cervejas, e a atirá-las para dentro da banheira, ao traseiro de uma senhora, puxando dele como duma gaveta - e o homem desistiu das coisas que não controlava, desistiu das mãos e procurou a cama, deitando-se nela e amaldiçoando aquelas mãos, quando tudo o que ele queria era pegar num cigarro com uma mão, a direita, e com a esquerda agarrar num livro pela lombada, que ele abrisse e que lesse. Mas deitou-se na cama, e esperou que o sono viesse enquanto as mãos o importunavam com danças sem sentido e intenções que o homem desconhecia. No limbo entre o absurdo e o sono, as mãos desceram-lhe pelo tronco, até às virilhas e começaram uma massagem obscena e assim se veio o homem, pelas mãos de outrem. Porque as mãos livres, cheias de carisma, eram as mãos de outro homem, que, de pau feito, se contentava com um livro de receitas na mão esquerda e se engasgava com o cigarro que acendera e segurava com a direita - tinha havido uma troca.
Sujo, num gesto de repugnância, cortou as mãos com os dentes, e assim se esgotou a confusão deste homem.

Raul